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“Nossos passos vêm de longe”

Em julho de 2022 o Dia da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha completará 30 anos Por Jaqueline Fernandes

Eu posso começar afirmando que 30 anos não são 30 dias. Ao mesmo tempo, que não são apenas 30 anos. Não seria justo localizar a jornada de lutas, conquistas e desafios das mulheres negras na América Latina e Caribe apenas pós 1992. É fato que os movimentos de mulheres negras na américa Latina e Caribe nasceram ainda nos tumbeiros, com a inteligência, as tecnologias e as ciências, a insurgência, desejos de liberdade, resistência e capacidade de articulação das nossas ancestrais, tão violentamente escravizadas. Ainda assim, 1992 vai ser sempre um capítulo potente e especial na nossa história. 

Os movimentos de resistência, que se iniciaram no dia 1 do que os colonizadores chamaram de América Latina, seguiram-se: diversos nas atuações e incidências, por todos os cantos, se agigantando em coletividades, quilombos, frentes, redes, coletivos, alianças, coalizões e até mesmo de forma autônoma. Sempre em contraposição à continuidade e efeitos do colonialismo, do racismo e do machismo sistêmicos, estrategicamente combinados para nos atingir.

 E, assim, séculos depois do tal dia 1, no dia 25 de julho de 1992, mulheres negras de diversos países, após um longo período de articulações e esforços conjuntos, se reuniram na República Dominicana para o I Encontro de Mulheres Negras da América Latina e do Caribe. Pelo menos duas das determinações desse encontro ecoam fortemente depois de 30 anos: a determinação de criação do Dia da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha como um marco de lutas e reflexões sobre a nossa situação na região e a criação da Rede de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-Caribenhas. 

Durante muito tempo, sem representação, diálogo e alinhamento de pautas com a realidade da maior parte das mulheres não-brancas, o movimento feminista hegemônico fez do 8 de março um grito no vazio para muitas de nós, mulheres negras. Somos quase 100 milhões, só na América Latina. Então, o sucesso e avanço do 25 de julho seria inevitável. Era inevitável ter um marco próprio de celebração por e para mulheres pretas, para o fortalecimento de nossas identidades, reflexão, protagonismo de fazeres e saberes, além de denúncias contra o racismo e contra o sexismo.  E as condições, assim como a conjuntura para a criação desse marco, se deram, não à toa, na República Dominicana –  onde os colonizadores quiseram fundar a primeira capital do Império Espanhol no “Novo Mundo” e onde queriam que fosse uma nação chamada Grã- Colômbia, mas não lograram sucesso porque foram expulsos por nossas ancestrais negras e originárias.

O encontro de 1992 e a criação do Dia da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha, sem dúvidas, mudou para sempre a agenda política dos movimentos de mulheres negras na região. Em 30 anos, não é pouca coisa onde chegamos com a disseminação da data. Hoje, por toda a América Latina e Caribe são realizadas atividades para marcar o 25 de julho, e que reafirmam a necessidade de discutir e propor soluções para a realidade de extrema vulnerabilidade da mulher negra no continente. 

Ainda no ano 1992, a Onu reconheceu oficialmente a data. No Brasil, no dia 02 de junho de 2014, foi sancionada pela presidenta Dilma Roussef a Lei que institui o Dia da Mulher Negra, 25 de julho, em homenagem à grande líder quilombola Tereza Bengela, como fruto das incansáveis mobilizações dos movimentos de mulheres negras.

Para mim, é simplesmente encantador ver onde pôde chegar uma articulação iniciada em um evento. Como produtora e gestora cultural muitas vezes recebi portas na cara e negativas recorrentes ao tentar captar recursos para realizar eventos de propósito, sob a justificativa de que gastos com eventos são equívocos, que eventos não são ações estruturantes, que o evento passa e tudo acaba porque eventos não deixam legado. Existe até um ditado popular que representa essa crença cristalizada. Ele diz: “evento é vento”. A minha experiência sempre me levou a questionar isso e a me perguntar porque ser vento haveria de ser algo ruim. 

E eis que, em 2006, em uma das reuniões do Fórum de Mulheres Negras do Distrito Federal, um vento forte fez chegar até mim algumas imagens do I Encontro de Mulheres Negras da América Latina e do Caribe. Quando eu percebi tudo aquilo que havia sido arquitetado e discutido ali, imediatamente, me apaixonei e pensei: porquê eu nunca havia ouvido nada sobre o Dia da Mulher Afro Latino Americana e caribenha até ali, se a data já tinha mais de uma década? Naquele minuto eu decidi que iria fazer o que eu pudesse para contribuir com a divulgação e mobilização desse marco no Brasil. E assim, combinando esse desejo, a conjuntura local e o fato de eu ser uma mulher negra, periférica, ativista e produtora cultural vivendo na capital do país, onde a população negra é maioria, porém, invisibilizada brutalmente,  em 2008, foi criado o Festival Latinidades – projeto pioneiro na popularização da data e, posteriormente, considerado pela crítica especializada o maior festival de mulheres negras da América Latina.

Em 2013 o Odara – Instituto da Mulher Negra criou o Julho das Pretas, uma ação de incidência política, uma agenda conjunta para o fortalecimento da ação política coletiva e autônoma das mulheres negras nas diversas esferas da sociedade. Um movimento expandido, uma força ativista que, somada às iniciativas de OSCs como Geledés, Criola, CEERT, Articulação de Mulheres Negras Brasileiras e muitas outras organizações e coletividades, vêm movendo centenas de ações e fazendo com que tenhamos um mês inteiro de atividades, nos quatro cantos do país. 

Em 2022 serão 30 anos de 25 de julho e o movimento de mulheres negras tem muito do que se orgulhar. Embora o racismo e o sexismo estruturais ainda impactem todas as esferas de nossas vidas e tenhamos muito a ser superado para alcançar a sonhada equidade, vai um aviso: “respeite quem pôde chegar onde a gente chegou”. Se eu fico orgulhosa com a contribuição do Festival Latinidades, fico imaginando mulheres como Nilza Iralci, Sueli Carneiro, Jurema Verneck, Cida Bento, Nilma Bentes, Eliana Hemetério, Valdeci e muitas outras que vieram muito antes de mim e que seguem firmes. Algumas delas, inclusive, estiveram presentes, representando o Brasil, no encontro de 1992 e, sem dúvidas, protagonizarão as comemorações dos 30 anos. 

Quanta alegria fazer parte disso! Porque, como vem afirmando a socióloga ativista Vilma Reis, “somos o movimento social mais bem-sucedido do país” e que “empurra a esquerda mais para a esquerda”.  Já é certo que 2022 vai ficar pequeno para o tamanho da mobilização e impacto gerados pelas nossas potências, juntas e articuladas, em toda a América Latina e Caribe. Feliz ano novo, com a força das nossas lutas e a renovação das nossas utopias negras. 

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